O receio vem pela carga pretensiosa do título, Tudo sobre cinema. No entanto a má vontade inicial vai logo pelos ares tão logo o leitor se inteira do potencial de esclarecimentos, da capacidade de entretenimento com histórias (ligadas a filmes ou a astros) e da proposta de contextualizar inúmeros movimentos cinematográficos do editor-geral Philip Kemp e de seus 25 colaboradores. Professor em universidades inglesas, Kemp faz valer o título de historiador do cinema. Desde a análise do impacto das obras examinadas (e ricamente ilustradas, com mais de mil fotografias) até um teor crítico, ocasionalmente ácido, o deleite é absoluto para qualquer cinéfilo.
Percepções estéticas, números de mercado e pertinência histórica dos filmes (em face das circunstâncias de produção) despontam como atrativos de Tudo sobre cinema, um parrudo lançamento da editora Sextante. O ;processo doloroso; das escolhas, que seria capaz de gerar ;lacunas; na publicação, soa falsa modéstia. Até a constatação da excelência tecnológica que reveste Avatar (2009), ando pela análise das ;raízes da psique norte-americana; pós 11 de setembro (a cargo de Paul Thomas Anderson e Martin Scorsese, entre outros), Tudo sobre cinema abraça, a princípio, a era dos primórdios da arte tonada ;refém da tecnologia;. ;Pode-se dizer que, até 1914, os principais desenvolvimentos técnicos ; à exceção do som, da cor e do 3D ; já haviam sido inventados;, esclarece.
Números impressionantes, como o faturamento de US$ 1 bilhão para Toy Story 3 (2010) e o da feitura de 500 filmes japoneses, por ano, em fins dos anos de 1950, se juntam a dados polpudos como a frequência anual de um bilhão de espectadores britânicos, em 1956, e à curiosidade de que, por oito meses, parisienses sustentaram a exibição de Um cão andaluz (1929), de Luis Buñuel e Salvador Dalí. Celebrado pelos surrealistas, o cinema fantástico de Georges Méli;s (;mágico por profissão;) é dimensionado por Viagem à lua (1902), entre 500 filmes do diretor, como matriz para fitas como 2001: Uma odisseia no espaço (1968) e Guerra nas estrelas (1977).
Epopeia nas telonas
Tachado como ;épico cósmico;, o cinema fantástico de Méli;s antecede o destrinçar de epopeias na telona, cujas origens estariam no ado clássico da Itália, país que depurou filmes ;visualmente extravagantes e de dimensões operísticas;, como Cabiria (1914), de Giovanni Pastrone, formado por ;mais de 1,2 mil cenas; capazes de influenciar até Intolerância (de D.W. Griffith).
A pesquisa dos épicos aponta Napoleão (1927), de Abel Gance, como suprassumo do apuro estético para o cinema mudo.
Alinhados às produções latino-americanas ; ;que não podiam se dar ao luxo de não serem políticas; ;, os longas brasileiros, por sinal, são apontados como os ;mais importantes; da região. Enterrada a declaração de Héctor Babenco, em 1991, de que o ;cinema brasileiro estava morto;, Cidade de Deus (2002), ;um convicente coro de anjos da cara suja;, se projeta, no livro, como o filme latino-americano referencial dos últimos 20 anos.
A ;energia resistente; atribuída ao neorrealismo italiano está detectada, num amálgama com a nouvelle vague sa, nas fitas de Glauber Rocha, entre as quais A idade da Terra, elogiado por Michelangelo Antonioni pela ;lição de como se deve fazer cinema moderno;. O texto do jornalista Demetrios Matheou dedicado à América Latina prediz um enfraquecimento do poderio hollywoodiano, a partir do fortalecimento do consumo interno das produções locais.
O lugar da produção hollywoodiana
Hegemônico, desde os anos 1920, o cinema hollywoodiano não monopoliza as atenções em Tudo sobre cinema. Além de pontuar o efeito nefasto para a indústria ; a partir da multiplicação dos 3,8 mil televisores (em lares americanos de 1940) que, em 20 anos, chegaram a nove entre dez casas ;, o livro destaca que a excelência universal do cinema mudo foi motor de críticas ao ;retrocesso; demarcado pela incorporação do som.
O livro também registra decadências do porte das ;exibições desastrosas; de Monstros (1932), içado à condição de cult (na era da contracultura), e quedas nas bilheterias sas do produto nacional (com apenas 28% da arrecadação, em 1994). Se denuncia a existência de ;medíocres filmes multiculturais; de Cédric Klapisch (Albergue espanhol e Bonecas russas), o livro oferta o contraponto, ao exaltar a ;estética de autor; dos forasteiros (na França) Rachid Bouchareb e Michael Haneke (Caché), além do genuíno Jacques Audiard (O profeta).
Ainda que reserve ao intrigado François Truffaut, indiferente ao cinema francês ;de qualidade; dos anos 1950, o papel deflagrador da ;política dos autores; (que particularizou o quê pessoal de cada diretor), a extensa publicação esclarece um tema de pouco consenso. ;Acossado (1959, de Jean-Luc Godard) era realmente inovador no que diz respeito às técnicas, ao o que Os incompreendidos (1959, de Truffaut) é, de certo modo, uma redescoberta sa do neorrealismo italiano da década de 1940;, registra o provocativo capítulo Nouvelle Vague. A carga de inconformismo, na leitura, se desdobra em análises da nouvelle vague tcheca, do fatalista cinema noir (em dissonância com o otimismo reinante nas telas) e da New Wave britânica.
Fotogramas irados
Outro símbolo diabólico, mas na instância da segregação, Hitler povoa a descrição de fatos racistas vinculados à cena cinematográfica. Na esteira da mensagem torta de O nascimento de uma nação (1915), que apregoou que ;a vinda forçada dos africanos para os Estados Unidos plantou a semente da discórdia; (entre outros absurdos favoráveis à Ku Klux Klan), o führer promoveu a debandada de talentos como G.W. Pabst, Fritz Lang e Max Ophüls.
Atualizado, o livro celebra inclusive filmografias nórdicas, com detalhes do renascimento do cinema dinamarquês, por Lar von Trier e Thomas Vinterberg, no pós-Dogma 95 (que amputou a ;visão cosmética do cinema moderno;). Da ótica de O gabinete do doutor Caligari (1920) como modelo para o cinema de terror, ando por temas tão amplos quanto o dos componentes familiares na filmografia do japonês Yasujiro Ozu e o da perpetuação do western espaguete (remodelado do faroeste americano e dos filme de samurai) nas obras de Quentin Tarantino, Tudo sobre cinema se confirma como fonte completa para o prazer de aficionados pela sétima arte.