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Empreender é uma alternativa para fim da violência contra a mulher

Tornar-se dona do próprio negócio tem sido um dos caminhos percorridos por mulheres vítimas de violência doméstica na busca pela autonomia. Conheça histórias pessoais e de projetos que incentivam essa forma de emancipação

Lia Maria é fundadora da Associação Mulheres Empreendedoras (AME) -  (crédito:  Minervino Júnior/CB/D.A Press)
Lia Maria é fundadora da Associação Mulheres Empreendedoras (AME) - (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press)

"Ele me ameaçou de morte". A lembrança marcante faz parte do relato da escritora Marlene Zeni, 65 anos, sobre o relacionamento abusivo que viveu e durou 35 anos. O processo terapêutico e de autoconhecimento que viveu durante o difícil processo de separação resultou na transformação de vida por meio do empreendedorismo. Marlene separou-se e tornou-se escritora, palestrante e terapeuta, atividades que a levaram a conquistar autonomia e se libertar do ado abusivo. 

O empreendedorismo tem se consolidado como um dos principais instrumentos de transformação de vida de mulheres em situação de vulnerabilidade. No Distrito Federal, 53% das mulheres vítimas de violência são dependentes financeiramente. Por meio da criação do próprio negócio, as mulheres têm trilhado o caminho em direção da própria autonomia, independência e dignidade. 

Marlene conta que, nos anos 1970, quando era criança, as mulheres eram criadas para casar, cuidar da casa, do marido e dos filhos, mas ela sempre quis um caminho diferente. Casou, teve filhas e, aos 57 anos, conseguiu se libertar do relacionamento abusivo que vivia. A história dela é contada no livro O preço de não saber quem você é, lançado em abril. Além disso, ela também dá palestras e vive da disseminação do seu conhecimento e experiências. 

"Eu queria empreender, eu queria estudar, trabalhar. Esse sonho foi adiado, mas agora estou realizando. Hoje, sou a protagonista da minha vida", celebrou. "Hoje, minha história está sendo reescrita com superação, amor próprio, autoestima, leveza e felicidade. Estou conseguindo trazer à tona o ser humano que eu queria ser, mas que estava escondido por medo", acrescentou.  

Ações

Um decreto instituído em novembro de 2024 criou o programa Movimente, que tem o objetivo de facilitar o o feminino a serviços públicos voltados ao empreendedorismo e fomentar a autonomia econômica de mulheres em situação de vulnerabilidade. Além disso, o programa incentiva a produção de dados e a disseminação de informações sobre o universo feminino nos negócios. A iniciativa é coordenada pelo Sebrae-DF e pela Secretaria da Mulher do Distrito Federal (SMDF) com a colaboração de órgãos e entidades da istração pública, e do setor privado e da sociedade civil.

Como parte do programa, foi criado o Comitê de Empreendedorismo Feminino. O intuito é facilitar o o das mulheres a serviços públicos voltados ao empreendedorismo e fomentar a autonomia econômica de mulheres vítimas de vulnerabilidade.

A pasta investe periodicamente em ações de apoio às mulheres empreendedoras. Entre as principais, destacam-se a capacitação profissional e técnica em diversas áreas estratégicas. Em 2024, cerca de 6 mil mulheres foram certificadas em cursos como auxiliar istrativo, cuidador de idosos, porteira, copeira e áreas da beleza como extensão de cílios, manicure, sobrancelha, massagista, entre outros. 

"O empreendedorismo feminino vai além da geração de empregos e do crescimento da economia. Ele transforma realidades e redefine relações sociais. É uma ferramenta poderosa para mudar vidas e promover autonomia", destacou a secretária da Mulher do DF, Giselle Ferreira. "Quando oferecemos às mulheres a oportunidade de conquistar sua independência financeira, estamos dando a elas meios concretos para sair de situações de vulnerabilidade e romper o ciclo da violência. O fortalecimento econômico é um o essencial para que cada mulher possa construir uma trajetória de liberdade, dignidade e segurança para si e para sua família", completou. 

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De mãos dadas

Projetos independentes também têm assumido papel importante na luta pela emancipação financeira das mulheres no Distrito Federal. Um exemplo é o Elas com Elas, idealizado pelo Instituto Nossa Marka e liderado pela arquiteta Flávia Portela. A partir da formação empreendedora, o programa tem o objetivo de proporcionar autonomia econômica a mulheres em condições de vulnerabilidade social. 

Realizado em diferentes regiões istrativas do DF, o programa oferece cursos, oficinas e outras atividades para que as mulheres potencializem as habilidades empreendedoras e possam montar o próprio negócio. "Fazemos um mapeamento de onde tem mais mulheres vítima de violência. Desta forma, selecionamos as regiões istrativas para levarmos o programa com prioridade", explicou Flávia Portela. "O projeto tem se caracterizado como um espaço de acolhimento. As mulheres, às vezes, chegam em um grau grande de fragilidade e saem incentivadas a mudarem de vida", disse. 

Outra organização que incentiva o empreendedorismo entre as mulheres é a Ação de Mulheres pela Equidade (AME), uma organização não-governamental (ONG) que atua em regiões istrativas com mais mulheres em situação de vulnerabilidade como Itapoã, Paranoá e Ceilândia. Lia Maria dos Santos, 45, é uma das fundadoras e exemplo de profissional que se destacou por meio do empreendedorismo. Ao ficar desempregada em 2017, ela lançou a marca de roupas Diáspora 009. A marca chegou a ser escolhida como uma das marcas mais talentosas em uma lista que sai de cinco em cinco anos na revista Vogue.

"Busquei a minha ancestralidade e a minha veia artística para produzir roupas com tecidos africanos", relembrou. "Eu já tinha feito tudo que todo mundo teoricamente tem que fazer. Estudei, fiz graduação e mestrado. Mas o meu senso de paixão em um momento de desamparo gritou para a arte. O empreendedorismo para mim foi uma válvula de escape", descreveu. "Eu enxergo a moda e o empreendedorismo como caminho de proteção, de acolhida, de escuta, de possibilidade de melhorar a situação das pessoas", comentou.

"Eu já ei por vários tipos de violências físicas, emocionais e psicológicas em relacionamentos afetivos. Apesar de nunca ter sido dependente financeiramente de um homem, eu sei o que muitas mulheres am em relações abusivas", destacou. "Já chegaram a apontar uma faca para mim e ameaçar meus amigos que se aproximavam", recordou. "Se eu, letrada, cheia de títulos, forte, o por isso, imagina uma mulher que depende de marido para trazer comida para dentro de casa e bancar os gastos diários. É por isso que eu faço trabalho social", afirmou. 

Lia ressaltou que é necessário apoio e políticas públicas para ajudar as mulheres no processo de empreender. "O empreendedorismo é guardião e salvaguarda de vários processos de pobreza e sofreguidão brasileira, mas para empreender, é importante entender que é preciso MEI, CNPJ, há um custo, tem bônus e tem ônus. É importante que as mulheres tenham o a informação para se formalizar", pontuou. 

Diálogo aberto

Brasília conta ainda com o Conselho da Mulher Empreendedora e da Cultura (CMEC), que está no terceiro ano de atuação no DF. As ações realizadas são compostas por rodas de conversa que abrem espaço para o diálogo entre as mulheres assistidas pelo projeto. As palestras acontecem nas regiões istrativas que mantinham o programa ativo, sempre com foco em fortalecimento pessoal e profissional. 

O Conselho debate grandes temas nacionais de interesse das mulheres empreendedoras, que impactam na economia, no varejo, nas indústrias, no comércio e nos serviços. "O CMEC incentiva ainda a economia criativa, que pode ser implementada por meio do empreendedorismo, possibilitando o desenvolvimento da cultura e de uma maior inclusão social", explicou a presidente do CMEC-DF, Beatriz Guimarães. "Trabalhamos na capacitação e qualificação da mulher empreendedora, com sororidade, ética, diversidade, liderança, cooperativismo e profissionalismo".

Em parceria com alguns coletivos de mulheres do DF, o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) implementará, no segundo semestre de 2025, o Laboratório Organizacional Feminista, uma iniciativa que estimula o empreendedorismo coletivo, a autogestão, o autocuidado e o cuidado coletivo entre mulheres.

"Será uma experiência de construção coletiva, de planejar e gerir coletivamente uma iniciativa, o que dá um fôlego do ponto de vista econômico e torna mais potentes iniciativas individuais", destacou Guacira Oliveira, integrante do Colegiado de Gestão do CFEMEA. "Vamos reunir mulheres que vivem em regiões carentes, que estão ali na linha da pobreza, da miséria, construindo com elas alternativas econômicas coletivas para isso".

  • Marlene Zeni escreveu um livro contando a superação de um relacionamento abusivo e conquista da autonomia
    Marlene Zeni escreveu um livro contando a superação de um relacionamento abusivo e conquista da autonomia Isa Costa
  • Beatriz Guimarães preside iniciativa que ajuda mulheres a empreender
    Beatriz Guimarães preside iniciativa que ajuda mulheres a empreender Cristiano Costa
  • Flávia Portela lidera  o projeto Elas por Elas
    Flávia Portela lidera o projeto Elas por Elas Mila Ferreira

Artigo: Uma saída real

Por Larissa Guedes, advogada especialista em direitos das mulheres, mestra em estado, governo e políticas públicas

Quando a mulher consegue colocar o dinheiro no bolso com o próprio trabalho ela ganha mais do que a renda, ela ganha autonomia, autoestima e, principalmente, a coragem para sair de relações abusivas. Muitas vezes, o que segura uma mulher dentro de um relacionamento falido, abusivo e violento é a dependência financeira. Empreender é dar uma virada de chave de mudança e rompimento de ciclo.

Esse caminho é trilhado por muitas mulheres por falta oportunidade para mulheres no mercado formal de trabalho. Cada vez mais as mulheres começam com pequenos negócios de venda ou prestação de serviço criando soluções com o que elas têm em mãos. O empreendedorismo é o caminho mais seguro e sustentável de sobreviver com dignidade. 

Para isso, é necessária uma rede de apoio, um espaço seguro para empreender e o ao crédito. As políticas públicas precisam ser pensadas para isso. Feiras de economia solidária, editais específicos para mulheres empreendedoras em situação de vulnerabilidade, cursos de capacitação, promoção de rede, encontros e oficinas são ferramentas que impulsionam ainda mais essa emancipação das mulheres. Quando o Estado investe em iniciativas deste tipo, não está só ajudando a mulher a empreender, está salvando vidas.

A independência financeira é o primeiro o para a liberdade. 

 

 


Uma saída real

Por Larissa Guedes, advogada especialista em direitos das mulheres, mestra em estado, governo e políticas públicas

Quando a mulher consegue colocar o dinheiro no bolso com o próprio trabalho ela ganha mais do que a renda, ela ganha autonomia, autoestima e, principalmente, a coragem para sair de relações abusivas. Muitas vezes, o que segura uma mulher dentro de um relacionamento falido, abusivo e violento é a dependência financeira. Empreender é dar uma virada de chave de mudança e rompimento de ciclo.

Esse caminho é trilhado por muitas mulheres por falta oportunidade para mulheres no mercado formal de trabalho. Cada vez mais as mulheres começam com pequenos negócios de venda ou prestação de serviço criando soluções com o que elas têm em mãos. O empreendedorismo é o caminho mais seguro e sustentável de sobreviver com dignidade. 

Para isso, é necessária uma rede de apoio, um espaço seguro para empreender e o ao crédito. As políticas públicas precisam ser pensadas para isso. Feiras de economia solidária, editais específicos para mulheres empreendedoras em situação de vulnerabilidade, cursos de capacitação, promoção de rede, encontros e oficinas são ferramentas que impulsionam ainda mais essa emancipação das mulheres. Quando o Estado investe em iniciativas deste tipo, não está só ajudando a mulher a empreender, está salvando vidas.

A independência financeira é o primeiro o para a liberdade. 

 

NUMERALHA

52%

da população do DF

é formada por mulheres

36,4%

são donas de negócio

em 2024, na capital do país,

20.867

mulheres sofreram violência doméstica e denunciaram — 4,4%

a mais do que o ano anterior

53%

das vítimas de violência doméstica são financeiramente dependentes

135,4

mil

mulheres são donas

de negócio no DF 

*Fonte: Sebrae

postado em 02/06/2025 03:00 / atualizado em 02/06/2025 06:41
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