
Quando o desejo de criar e somar extrapola o peito, a arte se materializa como forma de pertencimento. Foi o que aconteceu há 10 anos, na Universidade de Brasília, quando estudantes de Comunicação Organizacional se organizaram em pequenas rodas de freestyle de rima depois da aula. O que começou como um encontro semanal de diversão entre amigos transformou-se em uma das mais importantes atividades culturais da cidade.
A Batalha da Escada nasceu em 2015 pelas mãos, mentes e corações de jovens inquietos e com gana de movimentar a vida acadêmica. Em um quarta-feira, no Centro Acadêmico da Faculdade de Comunicação da UnB (CACOM), o veterano André Henrique, conhecido como Gude, e o calouro Pedro Alencar, atual Pedro Além, se juntaram e fizeram uma rima para os colegas. Nas quartas-feiras seguintes, o encontro aconteceu novamente com um grupo de cinco a dez universitários.
Depois de ar pela Faculdade de Arquitetura e pela árvore atrás do Teatro de Arena, o grupo se juntou na escada do Ceubinho, no ICC Norte. A cada semana, mais estudantes curiosos e interessados se juntavam para ver o murmurinho que acontecia. Com o tempo, o que era uma brincadeira entre cinco amigos se tornou um evento semanal com mais de 200 pessoas assistindo, o que fez o evento se deslocar para o Teatro de Arena.
"O Ceubinho era um lugar de agem de todos. Você tá ando e vê uma galera rimando, a arte acontecendo de forma espontânea, natural e imediata, isso é muito encantador, então, foi muito rápido", afirma um dos fundadores da batalha André Henrique, Gude. Quase um ano depois do primeiro encontro no Cacom, centenas de pessoas se encontravam toda quarta-feira na escadaria do Teatro de Arena da UnB para assistir à batalha de rima entre MCs.
Com a quantidade de pessoas que a batalha ou a movimentar na universidade, algumas dificuldades burocráticas aram a dificultar o evento. "Toda semana tínhamos problemas com a segurança da UnB, que considerava o que estávamos fazendo bagunça, e com outros agentes da universidade. Tivemos diversos episódios de desligarem as luzes do teatro de arena", relata uma das fundadoras e diretora geral do projeto, Mariana de Alencar.
Diante das dificuldades, em 2017 os estudantes encontraram, com ajuda de professores, a maneira para terem o apoio da universidade: institucionalizar a batalha da escada. A professora de comunicação Márcia Marques e a decana de extensão da época, Olgamir Amancia, foram agentes fundamentais no processo de transformar o evento em um projeto de extensão universitário.
Desde então, o projeto encontrou a estabilidade necessária para permanecer na universidade. "O nosso principal motivador era fazer essa conversa entre ambientes que vivíamos, o hip-hop e a universidade, e nos sentirmos agentes e pertencentes a uma universidade que muitas vezes é fria e cheia de pressões", conta Mariana de Alencar.
Uma década depois, esses sentimentos permanecem vivos dentro de cada um que compõe a ação. É esse pulsar em comum que possibilita a continuação de um ambiente de diálogo e reflexão dentro da universidade. "A batalha é um lugar de troca de saberes das pessoas, de possibilidade de pertencimento e trabalhamos para manter esse espaço", destaca Mariana.
Gestão e Coletivo
Dadas as proporções que a batalha tomou, um pequeno grupo começou a se organizar para fazer acontecer o evento. Assim começou o processo de gestão da batalha da escada, que no início tinha entre seis a dez pessoas. Com os anos, diversas pessoas aram pela gestão do projeto. Com uma diversidade de ideias e criatividade, várias atividades foram sendo desenvolvidas e extrapolaram as barreiras da universidade e da batalha.
Segundo Mariana de Alencar, foi a partir da necessidade de separar o que era o evento semanal e o que eram as outras atividades surgiu a criação de um coletivo, que vem acontecendo de forma mais organizada desde 2023. Atualmente, a gestão da batalha funciona de forma subordinada ao coletivo, com uma equipe responsável pelas quartas- feiras e diretoria focadas nas outras atividades, totalizando 25 pessoas.
Uma das atividades mais recentes do coletivo é o projeto de pesquisa Acervo Distrito Hip Hop, que pretende, a partir da coleta de arquivos, trabalhos acadêmicos e entrevistas, preservar e contar a história do hip-hop do Distrito Federal. "A gente está coletando e digitalizando o material, e construindo um sistema digital que pretende ser uma ferramenta educativa e de o cultural", afirma o integrante do projeto e um dos fundadores da batalha, Pedro Além.
Arte que transforma
Organizadores, telespectadores e participantes da batalha da escada encontram na ação um espaço de escape e diversão. Porém, para além disso, desde os princípios do projeto o evento se configura como um importante espaço para o debate e conscientização da sociedade. "Surgiu de uma forma muito natural e acho que por uma demanda da cultura hip-hop estar dentro da universidade e começar a ocupar esse espaço e poder ser uma ferramenta de tecnologia social, educativa e cultural", destaca Pedro Além.
A reflexão, denúncia e debate fazem parte do movimento hip-hop, que tem origem nas periferias. Para o deputado distrital Max Maciel, agente de fomentação do hip-hop do DF, a presença desse movimento na universidade acolhe jovens periféricos e promove a ampliação de vozes e experiências. "Quando a cultura das ruas entra na universidade, a academia aprende com o hip- hop e o hip-hop aprende com a academia", afirma.
Há dez anos, experiências, conhecimentos e diferenças são colocadas em um espaço de expressão para os MCs e uma aula para quem assiste. "É um espaço de debate de uma vivência real, porque o que a galera fala ou ela fala o que ela vive ou ela fala o que ela tá vendo. Então, é a vivência de cada um, é um retrato da galera que tá ali", enfatiza Gude.
"A batalha é feita por gente, e é isso que eu desejo para ela: que continue indo gente, porque a batalha não é sobre quem organiza, é sobre quem vai lá ouvir e aprender", observa Gude. "Que ela continue fomentando um debate, uma troca que só vai acontecer nesse lugar, que é um dos principais valores da cultura hip-hop: um lugar de acolhimento, educação, irmandade e cidadania."