CINEMA

Estreias destacam a força brasiliense nas telonas do país

A atriz Gabriela Correa e o diretor Gustavo Galvão confirmam a capital como celeiro de artistas, em duas estreias de longas que chegam ao circuito exibidor

Virginia e Adelaide -  (crédito:  H2 Films)
Virginia e Adelaide - (crédito: H2 Films)

Numa conversa, o prestigiado cineasta Jorge Furtado solta um dos fiapos norteadores do mais recente filme, Virgínia e Adelaide (codirigido por Yasmin Thayná), no qual despontam talentos das atrizes Gabriela Correa (de Brasília) e Sophie Charlotte. "Tem uma frase do intelectual britânico, quase centenário, Bertrand Russell (morto em 1970), em que, perguntado por repórter sobre seu legado, ele dispara: 'deixo o legado de entender que o amor é sábio e o ódio é tolo'. E ele explica isso, porque o amor faz com que as pessoas se unam para construir coisas boas para todos, enquanto o ódio traz a destruição. E a humanidade não vai sobreviver se ela deixar que o ódio triunfe. Então, a gente precisa encontrar pontos de contato".

Tratando de sonhos, ideais permanentes, adversidades cruéis e o caráter bestial e contagioso do ódio, o filme explora os saberes, nos anos de 1930, das intelectuais Adelaide Koch e Virgínia Leone Bicudo, psicanalistas essenciais para o desenvolvimento da sociedade brasileira. "É gratificante ver o movimento dessas mulheres, e observar o quanto, quando as mulheres se movimentam; a gente vê a transformação do mundo. Se há revisões de temas do ado, e que se perpetuam hoje, muito vem do fato de as mulheres estarem sempre à frente de movimentos progressistas. Elas são as primeiras a sentir o progresso e o retrocesso da sociedade", avalia a atriz Gabriela Correa, à frente de papel que remete a origens do racismo.

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"É um filme que trata muito da nossa utopia de vida, do que a gente acredita. Se a gente consegue realizar um filme dessa forma, respeitosa, humana, interessante, rica e, culturalmente, humana, é possível que a sociedade também se inspire através disso", pontua Sophie Charlotte, que interpreta uma judia perseguida. "No filme, há muitas reflexões. Na produção, há uma mulher diretora, uma equipe de muitas mulheres, e num filme feminista. Sei que não fizemos um blockbuster, mas a gente fez um filme delicado, sensível e acho que o Brasil tem público para assisti-lo", observa a produtora Nora Goulart.

Entrevista // Gabriela Correia e Sophie Charlotte, atrizes

Quais os dados históricos relacionados ao filme que mais impressionam?

Gabriela Correa — Acho que foi o aspecto de vanguarda das personagens. Pesquisando Virgínia, eu descobri que ela foi pioneira em muitas áreas. Foi das primeiras mulheres negras a se formar em sociologia, em São Paulo, foi das primeiras a integrar a academia, no ensino superior, e, fatalmente, a primeira psicanalista não-médica do Brasil. O campo das primeiras experiências é muito fascinante.

Sophie Charlotte — Foi relevante notar os ganhos do encontro das duas, em realidade na qual se encontram e se iluminam. A Adelaide, que foge da Alemanha nazificada, uma alemã judia de Berlim, uma estudiosa também, mãe de duas meninas, se muda e muda totalmente o seu parâmetro cultural, num dado diretamente ligado ao ofício da psicanálise que exerce. No encontro com Virgínia, essa socióloga, houve nova luz — elas se ampararam, se apoiam e se iluminaram. Agora, em 2025, as pessoas vão conhecer essas duas cientistas tão poderosas. Deveria ser história já reconhecida, uma narrativa indispensável.

O paralelo com o Brasil atual é algo imperativo na análise do filme, não?

Sophie — Acho que é surreal a gente pensar que as mesmas questões que as protagonistas tratam nesse filme, ado nos anos 30, 40 e 50, ainda hoje são enfrentadas. Contei, nisso, com minha bagagem pessoal. Eu sou nascida e criada até os oito anos em Hamburgo. Mesmo depois que a gente se mudou, dentro da minha casa, a língua alemã era falada. Então, culturalmente, eu cresci com esse encontro, com as diferenças. E o que um encontro cultural dessa potência pode te trazer, pode te ampliar como ser humano.

Quais seriam as ferramentas para tal?

Sophie — Mais do que aspectos de diferença, este filme fala justamente de como a gente precisa formar alianças, como é importante a gente construir pontes, como a gente precisa do outro para ter uma visão, um entendimento humano melhor, maior. Então, é um filme antirracista, que trata das diferenças de gênero, de oportunidades, ele fala sobre preconceito em muitos níveis, mas fala ainda da beleza de encontros. E de quão forte essas mulheres precisam ser, e como precisamos ainda ser muito fortes, dentro da nossa realidade, pelo simples fato de viver, e aí ainda prosperar. Mulheres vivendo do ofício escolhido, da possibilidade de estudo e de realização profissional. É um filme que fala muito de esforços.

Questões identitárias povoam o filme. Como acha que conhecimentos de domínio africano poderiam contribuir em evoluções?

Gabriela — O estado brasileiro tem um dívida histórica com as pessoas escravizadas, traficadas, e que tiveram sua força de trabalho explorada. Foi uma força sequestrada pelo Estado brasileiro. A dívida é imensa, com dificuldades em ser reparada. Socialmente, a gente vê isso. E constatamos em vários âmbitos da sociedade. Acho que a gente pode começar a conversar, num diálogo com ações afirmativas, com ações reparativas, e aumentar cada vez mais o o ao letramento racial. Eu acho que aqui no Brasil cada vez mais a gente precisa falar sobre isso. E se entender como povo que teve formação complexa. Que teve uma formação violenta.

Confira entrevista:

Fuga sem destino

2023. Divirta se Mais. Inventario de Imagens Perdidas de Gustavo Galva?o com Maria Galant
Inventário de imagens perdidas: filme de Gustavo Galvão (foto: Bruno Polidoro/Divulgação)

Na descoberta da rotina da pandemia, uma intensa reflexão tomou a mente do cineasta brasiliense Gustavo Galvão, criador de Inventário de imagens perdidas, outra estreia. "Repensei como nunca o porquê de fazer cinema e assim me conectei com outras maneiras de abordá-lo. Devorava filmes com material encontrado ("found footage"). Me interessei também por filmes despreocupados em mostrar que foram feitos com muito pouco em termos de recursos — mas não em termos de elaboração estética e intelectual", analisa o diretor que investiu em criadores "fora da curva", entre os quais Chris Marker, Alain Cavalier e Frank Beauvais. Estava criada a semente que desembocou na realização do filme Inventário de imagens perdidas, sobre os conceitos de resistência, de preponderância ideológica (dados os conflitos da distopia que tem berço nas frentes de esquerda e direita) e de entendimento diante de desavenças, algo nutrido por referências como João Pedro Rodrigues, André Gil Mata e Aya Koretzky. "Talvez Marker seja a referência mais marcante, pela ênfase no texto e pela reflexão sobre a essência das imagens. No próximo filme, Alian Cavalier é a inspiração", adianta ele que chega ao quinto longa-metragem.

Duas perguntas // Gustavo Galvão, cineasta

Como crê ter criado um espaço de dualidade, porém de convivência, entre as duas vertentes que hoje dominam a  cena ideológica?

Tenho pensado cada vez mais nisso: não consigo imaginar um cinema totalmente desconectado do que acontece no mundo lá fora, parafraseando a personagem da Maria Galant (perseguida por um caos operante em guerrilha no Rio Grande do Sul). E se olhamos com atenção o que está ao redor, o que sobressai é o embate, o choque entre visões de mundo. Talvez isso não seja novo, não acho que seja. Mas o objetivo no filme foi discutir a violência que vem de carona com esses temas. É uma violência programada. E pior: tendemos a naturalizar tal violência. As personagens não sabem ao certo qual é a melhor forma de lidar com isso, seria com mais violência? Ou seria com arte e afeto? Com o filme, a proposta foi ir além disso, discutindo a quem interessa o caos.

Esteticamente, como se sentiu desafiado na realização?

Esse filme é diferente em todos os aspectos de tudo que fiz antes, o desafio foi justamente sair da zona de conforto que aprendemos a construir ao produzir um filme. A ideia foi permitir que as ideias fluíssem sem restrições, a partir de um fiapo de história, valorizando os sentimentos e a percepção do momento de todos os envolvidos. Isso potencializou algo que sempre busco ao fazer cinema, que é ser surpreendido pelo inesperado. Nesse sentido, colocávamos desafios no nosso trabalho o tempo todo, seja na concepção fotográfica (sem nada além da luz natural nas externas e de um ou dois abajures e dos projetores utilizados nas internas), seja no desenho de som (buscando ir além do meramente ilustrativo).

 


  • Inventário 
de imagens perdidas: 
filme de 
Gustavo 
Galvão
    Inventário de imagens perdidas: filme de Gustavo Galvão Foto: Bruno Polidoro/Divulgação
  • Equipe do longa-metragem de encerramento Virgínia e Adelaide
    Equipe do longa-metragem de encerramento Virgínia e Adelaide Foto: Edison Vara
  • A atriz Gabriela Correa
    A atriz Gabriela Correa Foto: Divulgação
  • Os diretores Gustavo Galvão e Costa-Gavras, em encontro em Trieste (Itália)
    Os diretores Gustavo Galvão e Costa-Gavras, em encontro em Trieste (Itália) Foto: Cristiane Oliveira/ Divulgação
  • A atriz Sophie Charlotte
    A atriz Sophie Charlotte Foto: Edison Vara/ Divulgação
postado em 08/05/2025 06:00
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