
No filme de estreia, a diretora Marianna Brennand impõe as credenciais de uma grande autora: com temática realista e árdua — Manas versa sobre atrozes atos de prevalecimento frente à inocência infantil —, a diretora logra denúncia incisiva sem ceder a espetacularização da violência. Marianna assina o roteiro que elucida um ciclo de vícios nos arredores da Ilha do Marajó (Pará) e que implica incesto e pedofilia; nele, trabalhou junto com Felipe Sholl, Marcelo Grabowsky, Antonia Pellegrino, Camila Agustini e Carolina Benevides. Tal qual em Funny games (de Michael Haneke) a violência é implícita, quase nunca exposta. Pai amistoso, presente e adorável para as filhas, Marcílio (o excelente ator de Brasília Rômulo Braga) é a chave para toda a problemática da protagonista Tielle (Jamilli Correa), perdida entre os conflitos internos e as traições de papeis e relações familiares. A falta de rota leva à similar trajetória de Edna Santos, a explorada protagonista de Iracema — Uma transa amazônica (1974). Depois de comer do "pirão" levantado pela luta da lida da família; Tielle vai provar do "cinturão" paterno que a leva a determinado destino sombrio de muitas crianças sexualmente abusadas no Norte do Brasil.
Enquanto o ciclo da natureza segue perfeito no exterior do cotidiano de Tielle e da mãe dela, Danielle (Fátima Macedo), atos repulsivos fermentam no seio da família — a excitação de Marcílio traz o auge disso, na cena da caça (brilhantemente dirigida) e na qual o clímax está no pai ofegante. "Tem coisa que não adianta tu querer mexer": a frase disparada para Tielle, pela mãe, traz o lastro de uma impunidade quase assegurada, quando o cenário ao redor denota ação desmedida da religião dentro da comunidade ribeirinha, a realidade de gravidez desestruturada e o romper de inocências.
Para quebrar tanto desconforto, a produção acolhe músicas que quebram a seriedade, casos das popularescas Sou do Norte e a versão aportuguesada de Total eclipse of the heart (clássico com Bonnie Tyler). Quem também esbanja talento é o coadjuvante Rodrigo Garcia, no personagem do inquieto Faguinho, repleto de galanteios e de incômodo risinho. A serenidade congênita de Tielle, no decorrer da fita, cede espaço para o registro de uma infelicidade movida a grossas lágrimas e coração partido (tudo sob o talento inerente de Jamilli Correa). Diferenciar "posse" de paternidade parece uma realidade coletiva pelos dramas reados (para a elaboração do roteiro) por moradores do rio Tajapuru. Num dos momentos mais amargos do filme para o espectador, o irmãozinho menor de Tielle argui: "(Tielle) Também é mulher do papai?".
Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular
"Imundizando a casa", como aponta a mãe, a menina tateia a formulação de uma referência ou de "identidade", e, nisso, esbarra na personagem da delegada (Dira Paes, um bálsamo na tela). Conceitos atravessados de pecado e de ignorância (como demonstram as folhas grampeadas, no livro escolar de educação sexual) se encavalam na trama em que Tielle parece destinada a ser "rapariga", depois de algumas "subidas na balsa" (um eufemismo sinistro para o ato da criminosa exploração sexual de jovens, em embarcações). Com a habilidosa câmera de Pierre de Kerchove e a precisa montagem de Isabela Monteiro de Castro, Marianna Brennand parece exorcizar toda a sorte de desgostos (presentes na narrativa), na emblemática cena final.
Saiba Mais