
As aquarelas de Genor Sales na exposição O tempo é rei, em cartaz na Cerrado Cultural, vêm carregadas de significados. Questões raciais, sociais e até alimentares estão presentes no trabalho do artista, nascido e criado na periferia de Goiânia. A pesquisa que originou as 30 obras selecionadas para a mostra começou no Sertão Negro Ateliê Escola, fundado pelo também artista goiano Dalton de Paula na capital goiana. Sales ou por lá entre 2022 e 2024 e saiu com uma série na qual reflete sobre si, mas também sobre uma condição social.
O peixe é um elemento comum nas obras apresentadas e vem de uma narrativa na qual o artista se imagina um ser deslocado. A analogia é com o peixe fora d'água e no cenário imaginado por Sales, a cidade é um rio e a rua, um afluente pelo qual o animal pode navegar. "Essa pesquisa resgata memórias familiares do meu bairro", diz o artista, que cresceu no Atheneu, na periferia de Goiânia. "No Sertão Negro, comecei a criar essa narrativa do peixe fora d'água, desse corpo que não se encontra no lugar de origem. E a aquarela é feita com água, é uma forma de levar água para esse peixe. Vou criando essa narrativa para discutir questões raciais, sociais e alimentares."
Quando se refere a questões alimentares, Sales explica que se deixou nortear pelo conceito de nutricídio, termo criado pelo médico norte-americano Llaila Afrika para refletir sobre a vulnerabilidade alimentar. "A gente supera a colonização, mas o sistema vem matar a população pela boca. O nutricídio envolve corpo, mente e espírito. É uma maneira de matar a população negra pela má alimentação e vulnerabilidade alimentar", avisa o artista, que criou uma série intitulada Os peixes para falar sobre o tema. "Faço uma brincadeira com o jogo do bicho, que não tem peixes, mas eu crio um jogo do bicho com peixes da bacia Tocantins-Araguaia", explica.
As questões sociais e raciais aparecem especialmente quando Sales explora elementos do próprio ambiente familiar, normalmente encontrados dentro de casa. Um filtro de água, um coração feito de tijolos ou um carrinho de jardineiro são referências para falar da segurança representada pela casa. "Tento sempre colocar elementos subjetivos para criar esse universo poético. O filtro talvez assimile muito a questão do meio ambiente, mas eu vou buscar a questão do tempo, que é corrido, que faz a gente buscar cada vez mais o sucesso ou algo que talvez a gente nunca consiga. Meu trabalho é uma forma de falar que voltar para a base é voltar para um lugar seguro e mais firme, mas de maneira muito subjetiva, nas entrelinhas, com elementos presentes na casa, na família", explica.
O filtro de barro, ele lembra, remete ao tempo na medida em que é preciso sempre esperar para que filtre a água. "Com isso, faço a relação dos perigos na rua, desse corpo negro que, exposto à rua, está mais em perigo", avisa. A natureza e o céu também são elementos frequentes e têm lugar de destaque na reflexão sobre o o à natureza. "Sou um homem negro de periferia dos anos 1990 que teve pouco o ao mundo natural, ao cerrado. Então questiono muito isso: quem tem o a esses lugares e quando não tem, o que isso pode acarretar?", diz o artista.
Sales também trabalha com pintura, escultura e desenho, mas escolheu a aquarela porque ela também é capaz de trazer um questionamento. A técnica delicada e a característica meticulosa do traço do artista despertam interrogações sobre a autoria. "É uma maneira de desafiar a própria técnica e quem está fazendo. Eu, um homem negro de 1,90m, quando falo que faço aquarela é uma forma de quebrar a visão do homem negro na história da arte", garante o artista, que faz ainda, nas obras, referência a toda uma cultura periférica, e traz para as próprias reflexões artistas e autores como Sérgio Vaz, Ferrez, Racionais MC e Maya Angelou.
Serviço
O tempo é rei
Exposição de Genor Sales. Abertura amanhã, às 11h, na Cerrado Cultural (SHIS QI 05 chácara 10). Visitação até 9 de agosto, de segunda a sexta, das 10h às 19h, e sábados, das 10h às 13h
Saiba Mais