VEREDAS DA ESPERANÇA

A experiência de agricultores que produzem e preservam o cerrado mineiro

Superar os impactos impostos pelas mudanças climáticas e ação degradadora do homem é desafio para manter a produção sustentável no Norte de Minas

Agricultora Zenita Lopes retira da vereda preservada em seu terreno, na localidade de Paracatu, o buriti que é transformado em doce -  (crédito: Luiz Ribeiro/EM/D.A Press)
Agricultora Zenita Lopes retira da vereda preservada em seu terreno, na localidade de Paracatu, o buriti que é transformado em doce - (crédito: Luiz Ribeiro/EM/D.A Press)

Montes Claros, Brasília de Minas, Januária e Chapada Gaúcha – As veredas e o cerrado mineiro sofrem com os impactos das mudanças climáticas, desmatamento, queimadas e com outras formas de degradação severa, como mostrou o Estado de Minas na série de reportagens “Veredas Mortas”, após percorrer quase 5 mil quilômetros e 55 cidades do sertão de Minas, da Bahia e Goiás.

Mas, mesmo em meio ao cenário desolador, existe a esperança de manutenção da vegetação nativa, das águas, da fauna e da flora. Essa luz emana dos agricultores familiares e dos empreendedores dos chamados arranjos produtivos locais em áreas junto às veredas e ao bioma cerrado, que desenvolvem a produção sustentável, protegendo os recursos naturais.

“A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado”, filosofou o escritor Guimarães Rosa nas palavras do personagem Riobaldo na obra-prima “Grande sertão: veredas”. No caso do cerrado, essa expectativa que brota em meio ao amargo da degradação ambiental é impulsionada pelos pequenos agricultores, veredeiros, quilombolas e outras comunidades tradicionais que recorrem ao extrativismo e a outras atividades de baixo impacto no campo, seja como forma de subsistência ou de obtenção de renda, apostando na manutenção da vegetação em pé.

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Eles também se tornam empreendedores sustentáveis, pois combinam produção com a conservação da biodiversidade. Trata-se da tradução do conceito de bioeconomia, um modelo no qual as relações econômicas derivam da preservação dos recursos naturais – uma combinação entre a geração de lucros financeiros e proteção ambiental, que deve ganhar destaque nas discussões da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30), que será realizada no Brasil, em Belém, em novembro deste ano.

As práticas conservacionistas são adotadas não somente por agricultores que plantam e colhem de maneira sustentável, mas por todos aqueles que dependem diretamente da natureza para o sustento dos seus variados pequenos negócios, tais como a colheita e a venda de frutos “in natura” de espécies nativas, a apicultura, o processamento do pequi, a produção artesanal de doces e de polpas de frutas, entre outros arranjos produtivos locais.

No caso dos veredeiros, eles ganharam uma alternativa de renda – e um motivo a mais para proteger o ecossistema – a partir da venda de matéria-prima proveniente do buritizeiro, palmeira característica das veredas, para a fabricação de produtos relacionados a algo que mexe com a autoestima de todos: a beleza. Os derivados do fruto nativo são adquiridos e processados pela Natura, maior indústria de cosméticos do Brasil.

Sustento familiar

A pequena agricultora Zenita Lopes Rodrigues, de 53 anos, é uma das que contam com uma riqueza natural que ajuda no sustento da família e a coloca numa posição privilegiada: a vereda localizada no fundo de sua casa na comunidade de Paracatu, no município de Brasília de Minas, no Norte do estado.

Enquanto pelo cerrado afora muitas vereadas definham, suas nascentes secando e sua vegetação agonizando, ali os buritizeiros continuam de pé, se beneficiando da água que brota e ao mesmo tempo colaborando para que continue correndo junto deles. O resultado? Uma paisagem que encanta os olhos. Zenita, além do privilégio dessa visão, aproveita bem os frutos da palmeira. É uma exímia produtora do doce de buriti, que fabrica desde 2005 e fornece para sacolões e supermercados de Brasília de Minas.

Além desse trabalho artesanal, Zenita teve valor agregado à produção na vereda de sua propriedade com uma destinação bem diferente dos tachos de doce. Desde 2016, a agricultora ou a ser uma das fornecedoras da matéria-prima do buriti para a Natura. 

O negócio foi viabilizado pela Cooperativa Agroextrativista Grande Sertão, sediada em Montes Claros. A entidade adquire de agricultores familiares e povos tradicionais o derivado da espécie nativa (a polpa do fruto desidratada, conhecida popularmente como “raspa de buriti”). Na sequência, processa a matéria-prima e produz o óleo de buriti, que é encaminhado para a indústria de cosméticos, para ser transformado em creme, protetor solar e outros produtos da linha “Ekos Buriti”.

Conforme José Fábio Soares, responsável técnico pela Cooperativa Grande Sertão, a entidade iniciou a parceria com a indústria para a comercialização da matéria-prima do buriti desde 2009. A iniciativa envolve 550 famílias de agricultores veredeiros de Brasília de Minas e outros sete municípios do Norte do estado. O projeto também envolve a capacitação dos fornecedores, que aprendem boas práticas de manejo para as palmeiras de buriti e seus frutos, destacando a necessidade de preservação das veredas.

Melhoria de vida

O dinheiro da venda do derivado do buriti garantiu o aumento da renda e a melhoria de vida dos veredeiros, que se tornaram fornecedores da matéria-prima. “Aqui na nossa comunidade, quase todo mundo já comprou alguma coisa de valor com o dinheiro do buriti. Uns compraram geladeira e fogão a gás... Teve gente que comprou motocicleta, teve gente que conseguiu comprar até carro”, contabiliza Zenita Rodrigues, confirmando que ela própria adquiriu eletrodomésticos e reformou a casa.

A veredeira lembra que o buriti é uma espécie do extrativismo que só tem safras mais volumosas a cada quatro anos. “É uma pena a safra grande demorar tanto. Se o buriti tivesse grande safra todos os anos, eu estaria tranquila e nem precisaria me preocupar com outro trabalho, como o plantio de horta. Aqui, a gente vende tudo que produz para sobreviver”, afirma Zenita, que trabalha na propriedade da família com o marido, Adilson Rodrigues Gaia, de 62, e um dos três filhos, Igor, de 26.

A produtora recorda que, nos seus tempos de criança, o fruto da palmeira característica das veredas quase não tinha valor. Com pouca serventia, servia de alimento para galinhas e porcos. Depois, com o aproveitamento do buriti para produção de doce e com a compra da matéria-prima pela indústria, os agroextrativistas aram a se preocupar mais com a preservação da espécie nativa, para garantir a geração de renda.

Zenita lembra que, antigamente, havia até quem cortasse buritizeiros para plantar arroz ou feijão em áreas úmidas junto às veredas. “Hoje, quando a gente vê um pezinho de buriti, a gente preserva. Eu mesmo sempre converso com o pessoal da comunidade e peço para preservar. Para não cortar nem colocar fogo no buriti”, afirma a empreendedora ambiental.

Para esses povos, o jeito de olhar para a vereda já não é o mesmo. “Acho que, hoje, as pessoas estão mais conscientes e procuram preservar mais a natureza. Antigamente, a maioria das propriedades tinha muito lixo, muitas sacolas plásticas espalhadas. Hoje em dia, a gente chega nos quintais e encontra tudo limpinho”, testemunha Zenita, que também comemora a brotação de novos pés de buriti em seu terreno, um fator importante para a natureza. Novas plantas da espécie criam raízes para a manutenção das veredas, das nascentes e, portanto, da água.

Frutos do cerrado

O pequeno agricultor Anísio Pereira da Silva, de 66 anos, o “Nisão”, é outro que lembra o tempo em que o fruto do buriti era muito pouco aproveitado. “A gente pegava um pouco do buriti para fazer doce, mas a maior parte ficava mesmo é para as criações comerem”, afirma. Hoje, de algo que “não servia para quase nada”, o buriti se transformou em uma de suas principais fontes de renda e de mudança de vida.

Também morador da comunidade de Paracatu, em Brasília de Minas, ele se tornou um dos maiores fornecedores da matéria-prima para a Cooperativa Grande Sertão, que processa o fruto nativo e dele retira o óleo, vendido para a indústria. “Foi uma renda, uma coisa muito boa, que apareceu. As terras daqui não produzem tanto. Então, os frutos do cerrado têm ajudado a gente demais”, diz o pequeno produtor, lembrando que outras espécies nativas têm contribuído para gerar renda na comunidade, entre elas o pequi e o murici.

O agroextrativista lembra que uma área de nascente foi cercada em sua propriedade a partir de projeto da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-MG). E afirma que quase a metade do seu terreno (com área total de aproximadamente 60 hectares), incluindo os pés de buriti de uma vereda, continua protegida.

Anísio se considera um preservacionista, e diz que cuida do meio ambiente pensando nas futuras gerações. “Tenho orgulho disso. Sei que não vou durar muito tempo. Mas tenho filhos e tenho netos. Quero deixar essa herança para eles”, afirma. “Todos devem proteger a natureza, não desmatando, não derrubando as madeiras, deixando um pedaço de reserva”, diz o veredeiro, traduzindo em linguagem simples o que é uma atividade sustentável.

Mesmo assim, ele reclama que, ao longo dos anos, apesar dos cuidados com a proteção ambiental, viu reduzir a água que brota das nascentes da vereda, o que lhe causa receio em relação ao futuro. “Tenho medo de que um dia não veja mais águas doce, não possa ver a água nascer aqui no lugar onde a gente mora”, preocupa-se o agroextrativista.

Outro pequeno agricultor que teve a renda da família melhorada com a colheita e venda da polpa desidrata do buriti para aproveitamento na produção de cosméticos é Diônio Aparecido Ferreira Jônata, de 40, também morador da localidade de Paracatu, em Brasília de Minas. Ele considera o “dinheirinho sagrado” vindo do extrativismo como uma “tábua de salvação”.

“Aqui, a gente planta uma mandioquinha, um andu e uma hortinha. Mas o buriti é a melhor renda que nós temos”, diz o agricultor, casado e pai de duas filhas, referindo-se à espécie nativa que domina a vereda que corta seu terreno. O morador da zona rural de Brasília de Minas ressalta a relevância da preservação do buriti, chamado de “árvore da vida” e “aquele que contém água” por povos indígenas, por crescer perto de rios e córregos.

postado em 01/06/2025 14:02
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