
A morte do papa Francisco, aos 88 anos, deixa o catolicismo em uma encruzilhada. Nenhum pontífice antes dele envolveu-se tanto em questões seculares, como comércio de armas, meio ambiente e conflitos globais, nem foi tão empático com os "párias" — descasados, comunidade LGBTQIA+, pobres, imigrantes.
Jorge Mario Bergoglio também entrou para a história por se esforçar para descentralizar o poder da Cúria Romana, ampliando a participação de leigos, especialmente mulheres, na liturgia e nas decisões. O peso político foi alto, com uma ferrenha oposição no seio da Igreja. Para especialistas, se os caminhos abertos por ele serão seguidos ou fechados, é uma incógnita. Porém, acreditam que, seja qual o rumo a ser tomado, a influência do legado de Francisco não poderá ser ignorada.
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"A liderança do papa Francisco revela como as instituições antigas se dobram sem quebrar", define Landon Schnabel, professor de sociologia da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos. Para o especialista, as reformas do papa foram calculadas, permitindo, por exemplo, que padres abençoem casais do mesmo sexo sem abalar a doutrina tradicional do casamento. "Isso cria espaço para respirar dentro dos limites doutrinários, em vez de desmantelá-los", acredita.
Contraste
Schnabel lembra que há um forte contraste entre a doutrina e a vivência prática dos fiéis. É o caso do uso de métodos contraceptivos, apesar da postura oficial do Vaticano, contrária à prática. "A Igreja opera em dois níveis: o que Roma proclama e o que o povo pratica. Francisco respondeu a isso com gestos simbólicos, que abrem portas, sem remover muros", diz. Em detrimento da rigidez doutrinária, o papa argentino, na opinião do sociólogo, ofereceu um caminho intermediário, buscando manter progressistas e tradicionalistas sob a mesma tenda — não à toa, o pontífice enfatizava a sinodalidade, a comunhão entre os católicos.
"O próximo conclave está em uma encruzilhada", acredita Landon Schnabel. Ele considera que, embora um retorno ao tradicionalismo pareça provável, "os cardeais podem nos surpreender ao escolher alguém para expandir as reformas de Francisco", embora mesmo o mais progressista será limitado pelos 2 mil anos de tradição eclesiástica. "Seja qual for a direção que escolher, o próximo pontífice deve, de alguma forma, preencher o abismo entre os pronunciamentos do Vaticano e a realidade vivida por bem mais de 1 bilhão de católicos em todo o mundo."
"Qual será a direção da Igreja depois de Francisco é algo desconhecido e dependerá muito de quem for eleito como seu sucessor", lembra Rebecca Rist, especialista em papado e professora de história medieval da Universidade de Reading, na Austrália. Rist recorda que, em 12 anos de pontificado, o papa se pronunciou em diversas encíclicas — cartas dirigidas aos fiéis — sobre questões controversas, como o sacramento da comunhão para divorciados que casaram novamente no civil, a restrição ao Vetus Ordo (missa em latim antigo), a bênção de casais do mesmo sexo e o combate à pedofilia dentro dos muros eclesiásticos.
Diaconisas
Outras questões controversas que ressurgiram no pontificado de Francisco incluem a ordenação de diaconisas, o que, segundo Rist, pode ou não estabelecer as bases para a futura ordenação de mulheres padres, tornando o celibato sacerdotal opcional, e a possibilidade de reavaliar a encíclica Humanae Vitae de Paulo VI, que condenou o uso de contraceptivos artificiais.
"Atualmente, a Igreja Católica está vivenciando uma profunda divisão entre os católicos que defendem as políticas 'liberais' de Francisco e aqueles que desejam retornar à Igreja muito mais 'tradicional' de Bento XVI (2005-2013)", explica a medievalista da Universidade de Reading. "Como o primeiro papa jesuíta da América do Sul, ao longo de seu pontificado, Francisco tem continuamente enfatizado a importância de cuidar dos pobres, necessitados e despossuídos, incluindo refugiados e imigrantes." A continuidade desse legado está nas mãos dos 135 cardeais com poder de voto no conclave, o processo de escolha do novo pontífice.
Na opinião de David Lantigua, professor de teologia da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, assim como seu antecessor, Francisco considerou essencial uma reforma na Igreja Católica baseada no Concílio Vaticano II, da década de 1960, que buscava modernizar a religião e reconectá-la aos fiéis. "Para ele, era muito necessária uma Igreja Católica moderna para proclamar autenticamente o Evangelho a um mundo faminto de esperança após a tremenda perda de credibilidade moral devido ao escândalo de abuso sexual do clero", diz.
Para dar conta da tarefa de reconstruir a Igreja no terceiro milênio, Francisco seguiu os os de seu homônimo medieval de Assis, do século 12, afirma Lantigua. "Ele abraçou intensamente os pobres e o planeta e defendeu a paz e a não violência sem ignorar o conflito e uma policrise convergente — ecológica, política, econômica e epidemiológica", afirma. Enquanto a chaminé da Capela Sistina, no Vaticano, não liberar a fumaça branca, que anuncia a eleição do novo pontífice, como essas questões serão enfrentadas permanece uma incógnita.
Temas sensíveis
Em 12 anos de pontificado, Francisco estabeleceu uma série de medidas, como a descentralização da Cúria Romana e o combate aos abusos sexuais dentro da Igreja, e manteve o foco em questões, como multilateralismo e mudanças climáticas. Caberá ao novo papa dar continuidade ao legado ou se dedicar mais a outros temas.
» Reforma da Cúria: o desejo de Francisco era uma reforma profunda no governo central da Igreja para fortalecer a evangelização e ouvir mais as igrejas locais, além de dar mais espaço aos leigos e às mulheres. Em 2022, entrou em vigor uma nova Constituição, que reorganizou os dicastérios, ou seja, ministérios, e priorizou
a evangelização.
» Ações anticorrupção: o papa renovou o obscuro setor financeiro do Vaticano, envolvido em escândalos, com a criação de uma Secretaria para a Economia. Uma estrutura de investimento foi implementada e medidas anticorrupção foram tomadas. Também ordenou a limpeza do Banco do Vaticano, com o fechamento de 5 mil contas.
» Pedofilia: Francisco multiplicou os pedidos de desculpas às vítimas e recebeu-as no Vaticano. Em 2019, destituiu o cardeal americano Theodore McCarrick, condenado por abuso sexual de menores. No mesmo ano, criou uma comissão para a proteção de menores, que acabou sendo integrada à Cúria.
» Diplomacia: o papa priorizou o Sul Global e países marginalizados do Leste Europeu em suas viagens. Foi um forte defensor do multilateralismo e denunciou consistentemente a guerra e o comércio de armas. Também chegou a um acordo sem precedentes com o regime comunista da China em 2018.
» Conflitos regionais: a diplomacia da Santa Sé trabalhou para a histórica reaproximação entre Cuba e Estados Unidos em 2014 e apoiou o processo de paz na Colômbia. Além disso, a Igreja liderada por Francisco se envolveu em vários conflitos regionais na América Latina e na África, abrindo canais e aproximando as partes, e promoveu acordos na Venezuela, entre Nicarágua e Costa Rica, e entre o Haiti e a República Dominicana.
» Imigrantes: o pontífice argentino defendeu os migrantes e pediu que eles fossem acolhidos sem distinção, visto que estariam fugindo da guerra e da miséria.
» Meio ambiente: na encíclica Laudato Si, de 2015, o papa pediu uma "revolução verde" e criticou o "uso irresponsável dos bens que Deus colocou" na Terra. Em 2020, escreveu uma exortação em defesa da Amazônia após consultar no Vaticano todos os líderes religiosos e indígenas da região.
» Diálogo inter-religioso: Francisco se manifestou a favor do diálogo com todas as religiões e manteve um relacionamento especial com o islã, selado com uma visita histórica ao Iraque em 2021.
Eu acho...
"O papado de Francisco foi altamente distinto e profundamente impactante — sua humildade, respeito por pessoas de todas as condições e sua maneira descontraída de falar sobre questões complexas mudaram o foco da Igreja. O papa, que não estava isento de controvérsias, especialmente entre os bispos, ampliou consistentemente a ênfase de longa data da Igreja na justiça social, com seu foco na dignidade e no bem-estar de cada indivíduo. Ele demonstrou tremenda abertura às realidades da vida pessoal dos católicos, em particular às circunstâncias de católicos LGBTQIA e divorciados e recasados. Será interessante ver se o conclave votará em alguém que se alinhe com a sensibilidade de Francisco de garantir uma Igreja Católica inclusiva e dinamicamente sintonizada com as diversas realidades dos dias modernos."
Michele Dillon, especialista em catolicismo, reitora da Faculdade de Artes Liberais da Universidade de New Hampshire, nos Estados Unidos
"Há incerteza sobre quem será o sucessor de Francisco e, tradicionalmente, os favoritos no conclave raramente saem eleitos. O próprio papa Francisco nomeou a maioria dos cardeais que escolherão o novo papa, muitos deles vindos de regiões inusitadas e distantes, como Mianmar, o que torna ainda mais imprevisível o perfil do futuro pontífice. Seja um papa mais progressista, pastoral, moderado ou, até conservador, o exemplo de humildade de Francisco cria um novo parâmetro difícil de ser ignorado. Caso o novo pontífice retome tradições de ostentação, inevitavelmente haverá comparações com a simplicidade de Francisco. Ainda que não se saiba se as ações de maior acolhimento a casais de segunda união, divorciados, comunidade LGBTQIA e mulheres em cargos de liderança no Vaticano serão mantidas, é provável que a postura de humildade e simplicidade de Francisco influencie o estilo externo dos próximos líderes da Igreja."
Marcelo Valle, professor de relações internacionais do Ceub
"Embora ainda existam divisões entre os católicos romanos sobre o lugar da Igreja no mundo e seu futuro, o exemplo de humildade do papa Francisco perdurará nos corações e mentes daqueles ao redor do mundo — crentes e não crentes — que se voltaram para sua liderança moral. Por meio de suas nomeações e do seu alcance, o papa buscou consistentemente o diálogo em vez da exclusão. À medida que observamos o desenrolar dos eventos, veremos se o diálogo e o consenso caracterizam o trabalho dos cardeais. O próximo papa enfrentará desafios familiares e inéditos, mas a adoção de uma liderança serviente pelo papa Francisco certamente permanecerá um modelo poderoso para seu sucessor."
Erin Galgay Walsh, professora de Novo Testamento e literatura cristã primitiva da Universidade
de Chicago