Aos dez anos de idade, Eve Kugler integrava a tripulação que levou judeus da Europa nazista até a cidade de Nova York, nos EUA. No verão de 1941, ela e a irmã mais velha, nascidas na Alemanha, receberam vistos inicialmente destinados a outras duas crianças que adoeceram e não puderam viajar.
Tal sorte no último momento garantiu a sobrevivência de Eve durante o Holocausto, período que registrou o assassinato de 6 milhões de judeus – incluindo cerca de 1,5 milhões de crianças judias. Eve e a irmã viveram anos sem saber notícias do restante da família, que permaneceu na Alemanha sob comando de Adolf Hitler.
De acordo com o Washington Post, Eve nunca parou de se sentir culpada por “ter garantido um lugar seguro à custa de uma criança doente”. Aos 94 anos de idade, a sobrevivente morreu no dia 23 de abril em um hospital de Londres, em decorrência de um câncer.
Eve residiu nos EUA e, posteriormente, na Inglaterra, lugares nos quais tornou-se uma guardiã incansável da memória das vítimas do Holocausto. Ela viajava com estudantes aos campos de concentração nazistas e oferecia-se como uma testemunha viva dos perigos da segregação étnica, religiosa e racial.
Nascida Eva Kanner em Halle (Alemanha) em 1931, Eve era filha de comerciantes. A vida de sua família – bem como a de milhares de judeus – foi prejudicada em 1933, quando Hitler tornou-se chanceler do país. Segundo entrevista de Eve ao Refugee Voices Archive da Association of Jewish Refugees, em 1936 sua mãe deu à luz a terceira filha em casa, porque judeus não podiam mais ter filhos no hospital.
Eve relatou ao evento britânico Holocaust Memorial Day Trust o terror que ou na Kristallnacht, ou Noite dos Cristais Quebrados (1938) – ataques antissemitas a casas, negócios e locais de culto judaicos em toda a Alemanha. Durante a violência, uma sinagoga fundada com a ajuda do avô de Eve foi incendiada e os nazistas invadiram a casa da família.
“Eu estava na porta do meu quarto e assisti enquanto eles invadiam nosso apartamento”, contou. “Eles viraram móveis, esvaziaram armários de roupas e louças, pisoteando tudo. Num ataque frenético no quarto do vovô, rasgaram seus textos sagrados em hebraico e profanaram seu Sefer Torá. De manhã, os nazistas obrigaram minha mãe a varrer os cacos de vidro das vitrines quebradas da loja.”
O pai de Eve foi um dos cerca de 30 mil judeus presos durante a Kristallnacht e levado a campos de concentração. Naquela época do Holocausto, os judeus ainda conseguiam deixar a Alemanha. A família foi para a França, onde o pai de Eve foi novamente preso pela nacionalidade alemã. Sem meios para sustentar as filhas, a mãe confiou Eve e suas irmãs à Oeuvre de Secours aux Enfants (OSE), que as colocou em uma série de abrigos infantis e empregou a mãe como cozinheira.
Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular
Em 1940, a Alemanha invadiu a França, período em que Eve presenciou bombardeios aterrorizantes. Em 1941, o governo dos EUA autorizou a entrada de um grupo de crianças refugiadas no país. O United States Committee for the Care of European Children, em parceria com o American Friends Service Committee (um grupo quaker), organizou transportes com a ajuda da OSE.
Ao Washington Post, Eve contou que ao chegar nos EUA, ela e a irmã foram acolhidas por famílias adotivas. Nos anos seguintes, Kugler viveu em três lares; sua irmã, em quatro. “Esses foram anos difíceis e solitários para mim”, escreveu ela no livro de memórias Shattered Crystals, co-escrito com sua mãe, Mia Amalia Kanner, e publicado em 1997.
“Emocionalmente abalada e traumatizada pelo Holocausto, cheguei à América com uma deficiência oculta”, continuou. “Por mais bem-intencionados que fossem, os membros das famílias que me acolheram não tinham como compreender as razões para minha profunda infelicidade. Como poderiam entender meus sentimentos de isolamento, minha percepção de ser diferente das outras crianças? Como explicar a eles minha terrível e interminável culpa por ter sido salva às custas de outras crianças — aquelas que, na véspera da viagem, adoeceram e não puderam partir?”
Sem que soubesse na época, a família de Eve sobreviveu aos campos de concentração na França. Ela descobriu em 1945 por meio de um cartão-postal. Muitos parentes de Kugler morreram no extermínio sistemático do Holocausto, mas a sobrevivência da família nuclear inteira pareceu, em suas palavras, “milagrosa”.
Entretanto, a reunião familiar em Nova York no ano seguinte não foi fácil – Eve mal falava alemão nativo e a separação os tornou estranhos. “Minha mãe me contou livremente todos os horrores que aconteceram”, relatou Kugler. “E foi extremamente difícil.” Reunidos novamente, reconstruíram a vida nos Estados Unidos.
Eve formou-se em história no Brooklyn College, em 1954, e fez pós-graduação na Universidade da Pensilvânia. Casou-se em 1955 com Joseph Rosenzweig, teve dois filhos e trabalhou como secretária jurídica antes de se tornar jornalista, escrevendo para veículos como Village Voice e Riverdale Press, um semanário do Bronx. Mais tarde, atuou na assessoria de imprensa do Controlador da Cidade de Nova York, Harrison J. “Jay” Goldin.
Em 1991, casou-se com Simon Kugler, cidadão britânico, com quem se mudou para a Inglaterra, onde permaneceu após a morte dele, em 2010. O pai de Eve morreu em 1996, aos 97 anos, e a mãe em 2001, aos 96. As duas irmãs morreram em 2020.
Eve morreu um dias antes de participar da Marcha Internacional dos Vivos, evento anual realizado em Auschwitz, campo de extermínio nazista na Polônia ocupada. “Sinto gratidão — e certa culpa”, disse ela uma vez a um entrevistador, “por ter sobrevivido.”
/webstories/2025/04/7121170-canal-do-correio-braziliense-no-whatsapp.html
Saiba Mais gw38
-
Mundo O dilema da blusinha: pesquisa investiga por que brasileiro tem dificuldade de fazer 'escolhas sustentáveis'
-
Mundo Capela Sistina: as mensagens deixadas por Michelangelo no palco do conclave
-
Mundo Quem é a brasileira que leu a Oração Universal na missa antes do conclave
-
Mundo Ataques entre Índia e Paquistão deixam 38 mortos; veja vídeo
-
Mundo Quando e por que o celibato se tornou obrigatório para o papa e todos os clérigos católicos
-
Mundo "Que seja eleito o papa que a humanidade precisa", pede cardeal em Missa Pro Eligendo Pontifice