
Estarrecedor e, ao mesmo tempo, revelador, para comprovar que não há limites para a violência sexual. Enquanto a sociedade sa refletia sobre a indicação de François Bayrou, como primeiro-ministro, o terceiro nome indicado pelo presidente Emmanuel Macron para o cargo só neste ano, o país berço do iluminismo ganhou o noticiário mundial por outro motivo: o perturbador Caso Pelicot.
O episódio coloca o holofote principal em Dominique Pelicot, um idoso de 72 anos que drogou a mulher, Gisèle Pelicot, por uma década, para estuprá-la ao lado de outros homens, recrutados por ele a partir de um site francês de paqueras.
A Justiça sa condenou Dominique a 20 anos de prisão — a pena máxima prevista no Código Penal do país para crimes do tipo. Além dele, outros 50 homens receberam punições que, somadas à do mentor intelectual dos estupros, chegam a 428 anos de prisão. As outras detenções variam entre a pena mínima de três a 15 anos.
Dominique dava a Gisèle tranquilizantes capazes de desacordá-la por horas. Tudo era meticulosamente planejado pelo estuprador. Após fazer a esposa dormir, dava o aos comparsas à casa do casal, em Mazan, um vilarejo na região istrativa da Provença-Alpes-Costa Azul, a cerca de 700 quilômetros de Paris, nas proximidades de Avignon. A partir daí, a cena de horror era traçada com organização para não dar qualquer pista à vítima e à sua família.
O caso teve uma apuração relativamente rápida, sem grandes desafios para a investigação, pois Dominique filmava quase todos os atos. Ele só foi descoberto após importunar três mulheres em um mercado. A polícia ou seu computador e encontrou as gravações, que também eram acompanhadas de fotos da filha do casal e das enteadas, sempre nuas.
Ao se posicionar publicamente sobre a violência sofrida, Gisèle afirmou querer inverter a lógica do constrangimento. É comum, em casos de violência sexual, que a vítima se culpe e se coloque em uma posição de isolamento, em anonimato. A mulher, no entanto, se posicionou com coragem. "Que a vergonha mude de lado", declarou, em meio ao julgamento.
Ao sentenciar os acusados, a Justiça parisiense ouviu críticas de entidades feministas, sobretudo diante do fato de alguns suspeitos responderem ao processo em liberdade. Os filhos de Gisèle, inclusive, itiram a possibilidade de tentarem um recurso para aumentar o tempo de condenação, apesar de a mãe afirmar que respeita a decisão judicial.
Para além da pena, um ator central da violência contra Gisèle a despercebido: a responsabilidade do site de encontros no modus operandi de Dominique Pelicot. Como é comum em casos como esses, as empresas de tecnologia tentam se eximir de responsabilidade, mesmo quando suas plataformas são usadas para cometimento de crimes tão graves. A Justiça precisa analisar o papel dessas companhias, que facilitam o trabalho para predadores sexuais.
O Caso Pelicot deve ser emblemático para os países no que tange à responsabilização das empresas de tecnologia, inclusive o Brasil. Qualquer usuário médio do X (antigo Twitter) sabe como a rede social, após ser vendida para Elon Musk, se tornou tóxica e um terreno fértil para compartilhamento de pornografia. O mesmo vale para o TikTok, uma das plataformas mais usadas por crianças e adolescentes.
Aqui, cabe também o compromisso da sociedade para cobrar uma discussão mais profunda do poder público sobre a violência contra a mulher e a responsabilização das empresas de tecnologia. Afinal, como mostra o Caso Pelicot, as duas coisas andam mais juntas do que parecem.