
Por Graça Ramos*
Quando Brasília se encontra, a exposição de fotografias que o Correio Braziliense oferece à cidade em comemoração aos seus 65 anos é uma celebração à coragem de um povo que sabe reunir forças. Seja para construir, comemorar, resistir, se rebelar, seja para instituir, nós, brasilienses, desde sempre ocupamos as asas e os eixos da silhueta desenhada pelo urbanista Lucio Costa.
Com suas 41 fotografias, realizadas por 21 fotógrafas e fotógrafos, vinculados em algum momento ao veículo de mídia que tem a mesma idade da capital brasileira, a exposição oferece frenético leque de imagens de manifestações vividas em e por Brasília. Figurações poderosas porque documentam momentos em que renunciamos temporariamente, às nossas singularidades para compor coletivos de possibilidades.
Toda cidade constitui-se de encontros. Mas, aqui, somos a cidade dos encontros por excelência. Primeiro, foi a reunião das cabeças pensantes que idealizaram e projetaram Brasília. Depois, a dos milhares de candangos, nossos valorosos construtores. Em seguida, a agregação de grande número de famílias transferidas. De norte a sul, de leste a oeste do Brasil, nos encontramos em um quadrilátero diminuto para criar uma capital, cultivar esperanças, alimentar desejos de um futuro mais inclusivo. Continuamos sendo ponto de convergências. Permanecemos a nos encontrar.
A agem dos anos, entrecortada por uma ditadura civil-militar, transformou as formas de reunião. Deixamos de priorizar o concreto e nos encaminhamos para outro tipo de luta. Os encontros aram a dizer respeito à expressão democrática. Diretas Já, demarcação das terras indígenas, transgressora homenagem ao presidente-fundador Juscelino Kubitschek, lamento a Tancredo Neves, mutirões de fé, mobilização pela paz no trânsito, shows, comemorações de conquistas esportivas, muitos são os temas identificados nas imagens.
Vemos as fotos e logo acionamos memórias, mas não apenas dos eventos em si. Na multiplicidade de rostos, somos devolvidos à corporeidade do estar frente a frente a questões essenciais, lado a lado ao diferente. Unidos no grito, festivos na hora certa. Somos presença nas ruas e vias, nos amplos gramados, a caminho do cemitério, nas praças. Corpos suados, corpos em posição de desafio, corpos que dançam. Somos eros, no sentido vital da palavra, de que estamos em relação com o outro.
A exposição realiza transversal salto no tempo. Não se refere à epopeia da construção e à festa da inauguração da cidade-capital planejada. Evita-se, assim, repetir imagens muitas vezes vistas. Também não apresenta fotografias dos primórdios da ditadura instalada em 1964, quando o véu do medo esmaeceu a cidade. Há na decisão da curadora Cilene Vieira uma escolha emblemática. O período escolhido situa-se entre 1968-2002.
Ainda que a foto mais antiga diga respeito à recepção da população à visita da rainha Elizabeth, do Reino Unido, a escolha da data inicial se reveste de alusões. Trata-se do ano que marcou a civilização ocidental com a resistência, a revolta e a rebeldia dos jovens estudantes parisienses, fenômeno repetido em inúmeros países, inclusive no Brasil então dominado pela repressão do Estado autoritário.
Observa-se outra decisão fundamental ao olhar o conjunto das fotografias, que diz respeito à datação final em 2002: houve nítida determinação de selecionar imagens em que manifestações não estivessem marcadas por símbolos vinculados a partidos políticos e isso só foi possível estabelecendo essa data. A partir dos anos 2000, a polarização dos discursos se acirrou no país. Entramos em agônico processo de desrespeito, incrementado pelos desencontros permitidos pelas redes sociais.
Na configuração do de imagens, feita com base no corte temporal 1968-2002, não há ingenuidade. Ao contrário, identifica-se uma inteligente provocação, pois o conjunto de fotografias expõe diálogos possíveis. Na tensão das diferenças, a curadora sugere a ideia de que Brasília e o Brasil precisam reaprender a negociar formas de convivência.
* Graça Ramos é doutora em história da arte