ARTIGO

Quando o dia acordou cinza

A fotografia acordou mais triste, mais cinza, com saudades do seu preto e branco. Com saudades do homem que via longe, mas nunca perdia de vista o que estava diante de si

 (FILES) Brazilian photojournalist Sebastiao Salgado poses during a photo session in Paris on May 18, 2021. Brazilian photojournalist Sebastiao Salgado, who died on May 23, 2025, spent five decades chronicling the best and worst of planet Earth, from far-flung natural wonders to horrifying human catastrophes. (Photo by JOEL SAGET / AFP)
       -  (crédito: JOEL SAGET / AFP)
(FILES) Brazilian photojournalist Sebastiao Salgado poses during a photo session in Paris on May 18, 2021. Brazilian photojournalist Sebastiao Salgado, who died on May 23, 2025, spent five decades chronicling the best and worst of planet Earth, from far-flung natural wonders to horrifying human catastrophes. (Photo by JOEL SAGET / AFP) - (crédito: JOEL SAGET / AFP)

 ROSE MAY CARNEIRO, membro do grupo de pesquisa Gênero e Comunicação (Gecom), coordenadora de Extensão da Faculdade de Comunicação da UnB, líder do projeto @cine.pipocante

O dia acordou cinza. Mas não o cinza com seus matizes carregados de poesia e humanidade, como os retratos que Sebastião Salgado nos ofereceu ao longo de décadas. O cinza é o do luto, da saudade, da ausência de um olhar que foi bússola. 

É um dia sem o artista que não apenas fotografou o mundo; ele o sentiu, o escutou e o cuidou. Como professora de comunicação, cineasta e fotógrafa, sinto em minha pele e em meu ofício a vastidão do legado que Salgado nos deixa. Ele inspirou e continuará inspirando gerações de fotógrafos e fotógrafas com sua ética de escuta, seu olhar humanista e sua estética comprometida com a verdade. 

Quando Henri Cartier-Bresson afirmou que fotografar é colocar na mesma mira a cabeça, os olhos e o coração, Sebastião Salgado respondeu a essa tríade com a própria trajetória. Sua fotografia sempre foi mais do que técnica: foi entrega, compaixão e presença.

O início de sua jornada no universo das imagens foi quase casual. Foi Lélia, sua companheira de vida, quem lhe deu sua primeira câmera, com a singela intenção de que ele pudesse fotografar o filho recém-nascido. Mas aquele gesto amoroso abriu as janelas do mundo. Salgado extrapolou o enquadramento doméstico e expandiu o olhar para o planeta inteiro. 

ou a captar, com rara sensibilidade, os gestos do humano e as dores da Terra. Deixou para trás a economia, embora nunca tenha abandonado o olhar analítico — e trocou as planilhas pela poética das luzes e sombras.

Em Trabalhadores (1993), Salgado percorreu 26 países para retratar a dignidade do trabalho manual. Lavradores em plantações de chá em Ruanda, pescadores em lagos africanos, mineiros de ouro na impressionante Serra Pelada, homens enfileirados como formigas numa encosta de barro, erguendo sacos como se erguessem a própria existência. As imagens chocaram e comoveram o mundo. Autoridades foram forçadas a encarar condições de trabalho subumanas que permaneciam ignoradas havia décadas.

Em Êxodos (2000), voltou seu olhar para os deslocamentos forçados — refugiados, migrantes, populações em fuga por guerras, fome ou desastres. Ali, Salgado não via multidões anônimas: via mães, filhos, anciãos, pessoas com nomes e histórias. Registrou o sofrimento, mas também a força. Mostrou que o mundo moderno gera exclusões profundas. Suas fotos foram exibidas em fóruns internacionais e utilizadas por organizações humanitárias como denúncia e sensibilização.

Em Gênesis (2013), voltou-se àquilo que restou intocado. Visitou territórios preservados, comunidades indígenas, paisagens onde o humano ainda vive em harmonia com a natureza. Fotografou os ianomâmis na Amazônia, os nenets na Sibéria, os himbas na Namíbia. Gênesis foi sua carta de amor à Terra, um chamado ao respeito e à preservação. Políticos e ambientalistas aram a usar seu trabalho como ferramenta de conscientização em cúpulas climáticas e iniciativas de proteção a biomas vulneráveis.

E, então, veio Amazônia (2021-2022), seu último grande projeto fotográfico. Nele, ou sete anos imerso nas florestas, aldeias e rios, registrando a vida dos povos originários, a biodiversidade e a ameaça constante do desmatamento. Não foi apenas um livro de fotos, mas um clamor. Um grito sutil em preto e branco, convocando o mundo à responsabilidade.

Suas palavras acompanhavam as imagens com precisão: "Não podemos construir nosso futuro — o futuro da humanidade — com base apenas na tecnologia. Devemos olhar para o nosso ado, devemos levar em consideração tudo o que fizemos em nossa história. O ser humano tem uma grande oportunidade: a pré-história da humanidade está na Amazônia agora".

A meu ver, o futuro é analógico. Está no gesto lento, no olhar atento, no tempo da escuta. Está na fotografia que não apenas documenta, mas transborda sentido, ética e humanidade.

Sebastião não era apenas fotógrafo — era também replantador de florestas. Com Lélia, fundou o Instituto Terra e transformou uma fazenda devastada no Vale do Rio Doce em uma floresta renascida: mais de 3 milhões de árvores, uma imagem viva da regeneração.

Se há algo que os novos fotógrafos e fotógrafas podem aprender com ele, não está apenas na composição impecável ou no domínio técnico. Está na postura diante do outro, na paciência, na escuta, na presença, no compromisso com a verdade e com a beleza do real.

 Está na disposição de chegar sem julgar, de permanecer até ser aceito, de cantarolar músicas de raiz enquanto a lente se ajusta à luz da manhã.

Seu jeito de Aimorés o manteve conectado ao essencial. Falava com simplicidade, agia com grandeza. Registrava o mundo como quem o segura com cuidado nas mãos.

A fotografia acordou mais triste, mais cinza, com saudades do seu preto e branco. Com saudades do homem que via longe, mas nunca perdia de vista o que estava diante de si. Ele nos ensinou que fotografar é, sobretudo, cuidar — e que cuidar do mundo a por enxergá-lo com profundidade.

Por isso, mesmo ausente, Sebastião Salgado permanece presente em cada imagem que busca a dignidade, em cada gesto que planta uma árvore, em cada lente que se abre não para capturar, mas para acolher. 

O dia acordou mais cinza. Mas, no fundo desse cinza, brilha a memória de um olhar que jamais se apagará.

 

Por Opinião
postado em 24/05/2025 06:03
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