ARTIGO

"Ninguém é totalmente bom nem totalmente mal": mocinhos, bandidos e o canguru viajante

Parafraseando meu antigo professor, não existe tecnologia boa ou ruim. O que fazemos com ela, porém, pode fazer de nós um homem bom ou ruim

A IA está cada vez mais presente nos espaços acadêmicos, como escolas e universidades
     -  (crédito: Divulgação/FreePik)
A IA está cada vez mais presente nos espaços acadêmicos, como escolas e universidades - (crédito: Divulgação/FreePik)

"Ninguém é totalmente bom nem totalmente mal." Era assim que o saudoso professor Carlos Chagas, um dos grandes jornalistas brasileiros do século 20, referia-se às idiossincrasias de políticos e outras figuras públicas controversas. (Aqui, discordo do grande mestre: não é possível haver traço de bondade em genocidas de judeus e de palestinos, por exemplo.)

Porém, de forma generalizada, é fato que não podemos categorizar pessoas em boas ou ruins como fazemos com comida, filmes ou cantores. Da mesma forma, caímos em um erro grosseiro ao enaltecer ou demonizar coisas — entre elas, a inteligência artificial (IA). 

Por muitos anos, nós convivemos com a IA, sem nos darmos conta. É ela quem corrige automaticamente o que escrevemos no celular e no computador — o que, muitas vezes, resulta em erros grosseiros. Também são os sistemas inteligentes os responsáveis por abrir o portão da garagem por reconhecimento facial. 

Só fomos percebê-la, contudo, quando começaram a se popularizar os aplicativos de IA generativa, um modelo que aprende padrões de dados humanos para, depois, gerar conteúdos. Primeiro, houve um assombro típico das reações causadas pelas maravilhas da tecnologia. Todo o mundo testou a versão gratuita do ChatGPT para fazer poesia, escrever letra de música ou pedir resenhas, para ver até onde a máquina é capaz de "criar". 

Depois, veio o medo. E se, como nos filmes de ficção científica, os sistemas ganharem vida própria, tornarem-se mais inteligentes do que os humanos e tomarem o controle do planeta? Então, chegou o deslumbre. Novamente, todo o mundo brincando com o ChatGPT para fazer cartoon do cachorro no estilo Disney ou Pixar (o que, com razão, despertou um debate sobre direitos autorais). Ao mesmo tempo, há o fastio: muitas pessoas reclamam, nas redes sociais, de imagens e vídeos criados por IA, das manipulações exageradas, da falta de pitada humana no conteúdo ao que estamos expostos 24 horas por dia. 

A IA, de fato, é perigosa. Não que um robô-aspirador de pó sairá ando por cima dos donos para tentar sugá-los, nem que a Alexa espalhará para todos os seus contatos conversas confidenciais que ela escutou. O risco não está na máquina, mas em quem a comanda — no caso, alguém de carne e osso. 

Noutro dia, circulou no Instagram o vídeo de um canguru na fila de embarque de uma companhia aérea. Enquanto segurava inocentemente seu cartão, a funcionária da empresa batia boca com a suposta tutora do animal. Muita gente acreditou na cena — houve defesas apaixonadas pelo direito de ir e vir do marsupial, mas também teve quem reclamou de que ageiros podem ser alérgicos ao pelo do canguru. Claro, era IA. 

Se a pegadinha do canguru foi inocente, o mesmo não se pode dizer de conteúdo falso cada vez mais sofisticado do ponto de vista tecnológico, com criação, inclusive, de telejornais 100% fake. Aqui, corremos um risco duplo: ou aceitaremos tudo o que nos mostrarem ou não acreditaremos mais em nada. 

Na mesma semana em que o canguru "tentou embarcar no avião", o maior congresso mundial de oncologia clínica, o Asco, nos Estados Unidos, exaltou o uso médico da IA, com estudos demonstrando os benefícios da ferramenta em laboratórios e nos consultórios. Parafraseando meu antigo professor, não existe tecnologia boa ou ruim. O que fazemos com ela, porém, pode fazer de nós um homem bom ou ruim.

 

postado em 09/06/2025 06:00
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