Cidade Nossa

Cidade Nossa: Fichas bibliográficas: letra K

Na crônica deste domingo (4/5), Isabella Campos relembra do momento em que encontrou o filósofo Leandro Konder, no Rio de Janeiro

Isabella Paz é musicioterapeuta e professora de canto -  (crédito: Arquivo pessoal)
Isabella Paz é musicioterapeuta e professora de canto - (crédito: Arquivo pessoal)

Especial para o Correio — Isabella Campos da Paz 

Andava pelas ruas de Ipanema, quando avistei um carro popular, janelas abertas, sinal fechado. Sim, foi na esquina da praça General Osório, em direção à praia. Olhei aquela fisionomia plácida no banco detrás, os olhos claros, a testa calva, alguém com quem eu já havia me encontrado antes, em algum momento no ado.

A memória corria como um guepardo, lendo as fichas bibliográficas de A a Z, para que desse tempo de eu não perdê-lo de vista, antes que o sinal abrisse. E pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, me veio à mente a foto que tiráramos juntos, a lembrança dos livros que li, e as histórias da infância de meu pai. Eu estava diante do filósofo Leandro Konder.  Imediatamente pus-me a ir em sua direção, me apresentei afobada e logo sinalizei que precisávamos nos encontrar novamente, pois eu carregava uma dúvida enorme, como musicista, e, mais que tudo, como musicoterapeuta em formação! Acreditem. Eu fiz isso.

Essa tal General Osório, quando piso, coisas acontecem. Certa vez, eu estava no carro, num táxi, indo para o aeroporto atrasadíssima. Apareceu-me o Djavan! Eu não me contive. Mandei parar o táxi, saltei e perguntei: — Você é o Djavan? — Não. — Tem certeza? — Sim. — Como é o seu nome? — Perinho. Parti para São Paulo com minha indignação debaixo do braço, arquivada em pasta de papel pardo. Dizem que tem um músico famoso, parecido com o Djavan, chamado Perinho Albuquerque. Se você abrir a foto no Google, confirmará que não estou mentindo. Mas eu não tive ainda a oportunidade de perguntar, àquele Perinho, se ele era realmente o Albuquerque.

Então, voltemos ao Leandro. No dia seguinte, sua esposa me ligou marcando nosso encontro. Com um chá bem quente, de onde saía muito vapor, para não perturbá-lo, na cozinha de seu apartamento, fui direto ao assunto. — Leandro, eu queria saber se forma e conteúdo estão intrinsecamente ligados, se uma dada forma denota um conteúdo específico e absoluto, ou se uma forma pode ter vários significados, pois em musicoterapia, vários significados podem ser atribuídos a uma determinada produção sonora de um paciente, a qual tem uma forma.

Ele me olhou surpreso, não sei o que se ou em sua cabeça a meu respeito bem ali, e, após alguns segundos, a partir de sua humana certeza, ele declarou assertivamente: — Forma e conteúdo estão intrinsecamente ligados. Senti um "Uuufa", num primeiro momento, pela obtenção da resposta! Porém, um "viiiixe", logo em seguida, porque aí foi que eu não entendi mais nada sobre subjetividade em musicoterapia! E eu, que queria sintetizar conceitos, acabei me dando um presente de dúvida filosofal, tal qual: ser ou não ser, eis a questão! Fiquei olhando para ele, para o chá, sua esposa me ofereceu biscoitos, entrou e saiu da cozinha.

— O que é ser filósofo?, perguntei. — Isabella, todos nós somos filósofos. Se eu posso pensar, se você pode pensar, se todos podem pensar sobre si, sobre a vida, sobre qualquer coisa, todos nós somos filósofos! Naquele momento, para mim, ouvir o óbvio, sem sabê-lo, foi chocante. Jamais esqueci essa frase. E agradeço a Deus, até hoje, por ter fechado aquele sinal de trânsito. Por que nunca me disseram que eu era filósofa? Seriam os homens comuns filósofos? E terapia seria, então, filosofia? 

A tardinha caía, o barquinho ia, e eu precisava deixá-lo descansar. Agradeci muitíssimo por tudo, pelo chá, pelo encantamento e, antes de ir-me, perguntei: — Você acredita em Deus? — Não, Isabella, eu sou ateu. — Ateu?! Bem, se você é ateu, poderia me dizer, então, qual é a visão de um ateu sobre Deus?

Isabella Campos da Paz é musicoterapeuta e professora de canto

postado em 04/05/2025 06:00 / atualizado em 04/05/2025 15:43
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