
José Geraldo de Sousa Junior — professor emérito, ex-reitor da UnB, membro da Comissão Justiça e Paz de Brasília
Durante todo o apostolado, a voz do papa Francisco tocou expectativas civilizatórias que nos desafiam. Numa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, essa voz alcança a boa vontade que, em nossos misteres, nos convoca para superar a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar, disse ele, "a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso eu sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos".
Esse o diapasão de sua exortação, quem não lembra da cena, em seu exemplar distanciamento social na grande Praça de São Pedro totalmente vazia, do papa sozinho, mancando, na chuva, no silêncio do isolamento sanitário, no momento da Statio Orbis de 27 de março de 2020, com o mundo fechado dentro de casa, a humanidade aflita, mas com o papa profetizando a esperança e a fraternidade? "Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo todos chamados a remar juntos."
Não é possível, neste curto espaço, traçar o amplo panorama de incidências do profetismo do papa Francisco. Limito-me a buscar, no seu esforço pedagógico, os fundamentos que orientam seu protagonismo. Ponho em relevo as encíclicas e as exortações apostólicas, porque elas formam um repositório de fundamentos para o discernir e o agir não só da Igreja, mas para os que têm boa vontade.
Foram quatro encíclicas: a primeira, Lumen Fidei, sobre o tema da fé, a quatro mãos com Bento XVI; depois, Laudato si', um grito para invocar uma "mudança de rumo" para a "casa comum", em crise pelas mudanças climáticas e pela exploração excessiva, e para estimular ações para erradicar a miséria e para o o equitativo aos recursos do planeta. Depois, a Fratelli Tutti, o eixo fundamental do Magistério, fruto do Documento de Abu Dhabi, profecia — antes da deflagração de novas guerras — da fraternidade como o único caminho para o futuro da humanidade. Por fim, a Dilexit Nos, para repercorrer a tradição e a atualidade do pensamento "sobre o amor humano e divino do coração de Jesus" e lançar uma mensagem a um mundo que parece ter perdido seu coração.
São sete exortações apostólicas: desde a Evangelii Gaudium até C'est la confiance, para o 150º aniversário do nascimento de Teresa do Menino Jesus. Entre elas, as exortações pós-sinodais — Amoris Laetitia (sínodo sobre a família), Christus Vivit (sínodo sobre os jovens), Querida Amazonia (sínodo para a região pan-amazônica), Gaudete et Exsultate (sobre o chamado à santidade no mundo contemporâneo); e Laudate Deum (uma sequência da Laudato si' para completar seu apelo para reagir pela Mãe Terra antes de um "ponto de ruptura").
O que mostram esses ensinos é que, para o papa Francisco — combinando contemplação, sim, como está em suas principais encíclicas e exortações, mas contemplação na ação, realizando-as em proposições sobre o que se pode construir a partir do agora, mas em conjunto, em comunidade, como povo de Deus, numa renovada louva-ação do cântico do irmão Sol —, não se demite da exigência da missionariedade e da proximidade para o anúncio do Evangelho.
Ser missionário, como seus gestos demonstram, é estar ao nível do outro, olhar nos olhos, falar em condições de igualdade de uma boa nova que, talvez, possa ser efetivamente boa para seu ouvinte. Essa é, de fato, a "nova evangelização" esperada, que se representa por uma Igreja em saída que possa realmente "primeirear" (tomar iniciativa) nas "periferias existenciais e sociais", anunciando esperança, caridade e misericórdia de Deus.
A paz e os direitos humanos foram o objetivo constante de sua mensagem entre nós. Retiro da Fratelli Tutti. Sobre a fraternidade e a amizade social, a orientação para a sua agenda de diálogo com os movimentos populares e as instituições internacionais. Nesse contexto, Francisco fala tanto dos movimentos populares quanto das instituições internacionais. Parecem dois níveis opostos e divergentes de organização, mas, no fim, são convergentes na sua virtuosidade, pois valorizam o local, os primeiros, e global, os segundos, e sempre sob a insígnia do multilateralismo.
Os movimentos populares "reúnem desempregados, trabalhadores precários e informais e tantos outros que não entram facilmente nos canais já estabelecidos". Com esses movimentos, supera-se "a ideia das políticas sociais concebidas como uma política para os pobres, mas nunca com os pobres, nunca dos pobres, e muito menos inserida num projeto que reúna os povos".
Papa Francisco é uma voz que não se cala. Como disse frei Guilherme Anselmo Jr, "Deus confirmou a sua páscoa na Páscoa na Igreja". Assim, o papa Francisco travou o bom combate, terminou a carreira, conservou a sua fé. Mas a sua voz profética, pela justiça e pela paz, não se cala com a sua páscoa, continua a ecoar reverberando no sentimento profundo que nos faz humanos.