Cidade Nossa

Cidade Nossa: Pedro Azulão e a descoberta das quebradas

Em uma reflexão recheada de lembranças, Eliana Lucena lembra as boas memórias que criou junto de seu antigo companheiro de 4 rodas

Eliana Lucena - Colunista. -  (crédito: Arquivo Pessoal)
Eliana Lucena - Colunista. - (crédito: Arquivo Pessoal)

Especial para o Correio — Eliana Lucena

O carro não temia as rotas inexistentes no meio do cerrado. Seguia firme, não atolava, desbravando firme em meio à vegetação. Pedro Azulão, o Fusca de muitas aventuras, carregava amigos, entre jornalistas, doidos, indígenas, indigenistas. A tropa toda.

Atrás de novidades, um dia chegamos ao belo Poço Azul, mas o local já tinha frequentadores. Atrás de algo mais bucólico, fomos adiante, entre trilhas, até surgir um braço do rio e nele uma queda d'água e um poço transparente. Ali fincamos a nossa bandeira.

Mas o local não era tão secreto assim. Dias depois, o jornalista Pedro Rodrigues, o Pedrinho, apareceu na Redação do Estadão com a minha carteira de identidade na mão. "Ué, onde você encontrou?". Ele: "Perto da cachoeira que frequento com a minha mulher. Sempre deixo tudo bem limpo". Rimos muito. A quebrada não era secreta.

O carro ficava estacionado relativamente longe. Para descer até lá a pé, não era tão penoso. Mas a volta, como dizia minha comadre: "Era a subida do cai pressão".

Estávamos sempre atrás de novos achados, com o carro sacudindo entre tocos, pedras e fugindo das árvores no caminho. Às vezes, a parada era numa ponte com um riacho delicioso para um mergulho. E acampávamos ao longo de rios, como o Corumbá e o Descoberto.

E os dias seguiam assim. Nós recebíamos muitas vezes indígenas amigos, como Megaron, sobrinho do grande líder dos Kaiapó do Xingu, Raoni Mektutire, desde sempre envolvido na luta contra a invasão de terras. Aí vinha a dúvida. Onde levar o amigo? Acreditava que, por certo, ele estaria cansado da cidade grande, barulhos e comida. A opção então foi sempre levá-lo até alguma quebrada.

Numa dessas visitas, ele resolveu o problema de uma cobra. O carro estava quase escondido no meio do capim na margem da Lagoa Bonita, perto de Planaltina. Sorrateiramente, entrou no carro ando por cima das minhas pernas. No susto, estiquei o pé pela porta entreaberta e ela voou longe. Megaron matou a invasora, meio constrangido. Só observou que não se tratava de espécie venenosa.

O troco veio tempos depois, em uma de minhas viagens a trabalho ao Xingu, Megaron fez uma queixa desconcertante em público. "Sempre que vou a Brasília, a amiga me leva para ear no meio do mato. Eu querendo ir a um shopping, comer algo diferente, ver gente. Eu me arrumo todo, mas sempre me levam para assar uma carne longe da cidade."

Tempos depois, Em viagem a trabalho não tive tempo de comprar uma corda resistente para armar a rede. Dormindo na maloca dos Kamayurá, estendi a rede, mas ao deitar a corda se rompeu. Tombão. Na segunda tentativa, a mesma coisa. Na penumbra, um indígena sussurrou: "Jornalista caiu de madura. Corda boa você compra na Casa Karajá no Conjunto Nacional". Então, armou a rede de forma segura.

Assim, as culturas vão interagindo, entre descobertas, entendimento, amizades, lutas sem fim e laços que se fazem. Pedro Azulão não morreu de velhice. Aos 10 anos, foi roubado, todo marcado pelas aventuras, inclusive com o fundo do assoalho quase atingindo o chão. Ficamos muito tristes. Procurei pela cidade inteira, sem resultado. Quando vejo um Fusca azul marinho, ainda hoje, tento encontrar algum sinal do bom companheiro.

Hoje, a pé, de bike, moto ou carro locais incríveis já estão plotados em todo o DF. Apesar da cobiça por áreas verdes para o avanço urbano, aparecem boas novidades, com a recuperação de nascentes e da vegetação. Somos o Berço das Águas.

Cresce a legião dos que continuam atrás de sonhos, interagem com a riqueza cultural que povoa o DF, reagem à desigualdade social, aos ataques à democracia e às agressões ao nosso sofrido bioma.

postado em 11/05/2025 06:00
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